quarta-feira, julho 02, 2008

Humildade

Volta e meia a nos deparamos com pessoas que, ao se verem em situações que evidenciem nelas a falta de alguma capacidade intelectual que, via de regra, é considerada elementar, justificam-se, num tom levemente triste de quem se desculpa, dizendo algo do tipo "A gente somos muito humilde..." Humilde quer dizer pobre? E mesmo que seja isso, por que pobre tem que ser sinônimo de ignorante? Questão interessante...

Lembro do trecho de O Tempo e o Vento - O Continente, em que o índio Pedro Missioneiro apresenta à família Terra uma carta do coronel Pinto Bandeira para provar que, apesar de seu sotaque espanholado, já serviu como soldado nas tropas da coroa portuguesa. O velho Maneco Terra declara que ninguém de sua família sabe ler, e o autor frisa que, ao dizer isso, seu tom não sugere lamentação ou desculpa, mas é, antes, levemente desafiador (estou citando de memória, perdoem se as palavras não estiverem exatas). Isso não significa necessariamente que ele se orgulhe de não saber ler - apenas que não sente nenhuma vergonha de não ter tido a chance de aprender. Reflitam.

Claro que seria preciso ser bem mais que humilde - no mínimo, um completo idiota - para não estar ciente do fato de que muita gente não tem culpa de só saber, com muita dificuldade, assinar o próprio nome - ou nem isso. Se alguém cresceu num lugar onde a escola mais próxima ficava a quatro horas de viagem, e além disso teve que pegar numa enxada para pôr comida na mesa da família tão logo se tornou capaz de ficar em pé, seria tolo e injusto não entender que tal pessoa simplesmente não teve escolha. Por outro lado, o que devemos pensar ao ver que existem outros que apenas sentam em cima da tal "humildade" para justificar a falta de interesse em aprender um pouco mais?

É complicado fazer algum julgamento - cada caso é um caso. Algumas pessoas não são culpadas de terem um espírito anão. Umas podem usar a origem humilde como muleta para a preguiça e o desinteresse: "Sou pobre mesmo, ninguém vai ligar se eu não souber escrever direito e não tiver conhecimentos gerais, então pra que perder tempo estudando?" Outras (e isso é bem mais triste) podem ter-se deixado anular, incorporando a imagem que a sociedade preconceituosa tem delas: "Sou pobre, não adianta ficar sonhando muito, tenho que levar a vida que Deus me deu..." Por que não há ninguém para dizer a essas pessoas que, mesmo que seu padrão de vida não venha a melhorar muito do ponto de vista meramente econômico, elas podem, se quiserem, ter uma vida muito mais cheia e significativa, se apenas decidirem abrir os olhos para o mundo que as cerca, e ver o quanto de maravilhas existem nele, só esperando para serem descobertas?

E o que dizer então de pessoas nada humildes (em nenhum dos sentidos da palavra...), que tiveram e têm todas as condições, e são burras, tapadas, arrogantes e prepotentes? Quantas pessoas nós conhecemos, que passaram por uma faculdade e conseguiram a proeza de sair dela tal como entraram - perfeitos quadrúpedes pastadores?

Joaquim Maria Machado de Assis era filho de uma lavadeira e de um pintor de paredes (este, filho de escravos) e conseguiu, pelo próprio esforço, ingressar no funcionalismo público, o que lhe proporcionou um nível de vida, se não faustoso, confortável, além de tempo livre para praticar seu hobby: escrever. Nessa brincadeira, tornou-se o maior escritor da língua portuguesa e um dos maiores da literatura universal. Agora imaginem se ele tivesse simplesmente preferido se esconder atrás de sua origem "humilde" e se contentado com uma vida de poucas letras e ainda menos horizontes...

Alguém disse que cultura é uma forma de status, e outro alguém, que a opinião pública é uma tirana débil, se comparada à opinião que temos de nós mesmos. Para mim, as duas frases se complementam. Pouco me importa (na verdade, não me importa um átomo) se ninguém mais no mundo entender qual a vantagem (e por que, em nome de Deus, tudo tem que trazer alguma vantagem??) de saber citar Virgílio ou de saber o que Alexandre Nevski fez na vida. Conhecer isso e outras coisas semelhantes traz satisfação para mim, faz com que eu sinta que estou tendo uma vida melhor do que teria se me contentasse em ser "humilde". E, para mim, se eu sinto dessa forma, é o que importa.