quarta-feira, outubro 21, 2009

As Estantes Infinitas

Acabava de ocupar meu assento no ônibus intermunicipal para a costumeira viagem de uma hora e meia que, para mim, marca o fim do fim de semana (fim do fim?... Hum, deixa pra lá, sei que vocês entenderam) e, como sempre faço nesses momentos, abri minha mochila para ligar o discman e pôr os fones nos ouvidos - só que aí percebi que tinha esquecido em casa os meus fones especiais com isolamento acústico. Com um aflito “Oh, não!” em pensamento, abri o bolso frontal da mochila na esperança de achar ao menos um daqueles fonezinhos vagabundos que vêm com os MP3-players e que costumo levar como reserva - mas nem isso encontrei. Resignado, acomodei-me para passar os 90 e poucos minutos seguintes sem ouvir música e, o que é pior, tendo que ouvir as conversas dos outros passageiros, coisa da qual não faço a menor questão.

Há sempre a possibilidade de se estar enganado e de que eu fosse brindado com um delicioso silêncio quebrado apenas pelo ronco distante do motor do ônibus, mas foi questão de minutos que certa senhora que sempre viaja junto comigo começasse a sua algaravia. Ela tem um tipo de voz que sempre me perguntei como poderia descrever se precisasse, mas nunca tinha achado a palavra até aquele momento, quando então a palavra, repentinamente, se apresentou por si mesma: era o que um romancista definiria como uma voz “asmática”. E começou a voz asmática da tal senhora a falar com alguém sentado ao lado dela sobre o estado lastimável em que estavam suas unhas, por ter passado o fim de semana arredando geladeira, armário e outros objetos pesados. Céus, o que eu não teria dado naquele momento para estar ouvindo qualquer coisa do grande Deep Purple. Mas, na presente situação, o que me restava era tentar abstrair. De modo que me transportei de volta para a noite da véspera. Uma noite de sábado.

O cenário era o shopping Praia de Belas, onde eu e a menina que estava comigo chegamos depois de uma longa e agradável caminhada de fim de tarde regada a conversa pela orla do Guaíba, começando na Usina do Gasômetro. Mais exatamente, o cenário era um lugar específico do shopping, a Saraiva Megastore, onde inevitavelmente acabamos, depois de um bom jantar e de um excelente chocolate quente na lojinha da Kopenhagen. Entrar lá e andar por entre todas aquelas estantes, sentindo o ar carregado com o cheiro de papel novo e tinta, sempre me pareceu uma experiência profundamente sensual e um tanto mística, algo que só quem viveu em estreita simbiose com os livros durante toda a vida (ou, ao menos, durante muitos anos) pode chegar a compreender. Mesmo na época em que raramente podia comprar algum livro, eu gostava de ir lá, percorrer com olhos sonhadores aquele mar de lombadas, pegar ao acaso um livro que chamasse a atenção pelo título, ou sobre cujo autor eu soubesse um pouco... Hoje, então, que não preciso mais passar a privação de sair de lá sem levar alguma coisa, a visita a tal lugar tornou-se ainda mais agradável.

A moça, que também é uma leitora inveterada (não saio com quem não seja: podem desistir) comentou, com palavras ligeiramente diferentes, sobre o “garimpo” que é encontrar, no meio de todos aqueles livros, um que nos agrade e vá nos proporcionar longas horas de prazer e, possivelmente, nos ensinar coisas interessantes. Concordei, e fui mais além: é um tanto aflitivo pensar que ali, no meio de milhares de livros, pode haver um ou alguns que, se os lêssemos, poderiam operar mudanças importantes em nossas vidas - pois há livros que têm esse poder. Houve livros que me chamaram a atenção logo que os tive diante dos olhos; por outros eu não teria dado nada a princípio, mas, por uma ou outra razão, comecei a lê-los e não me arrependi. Como saber quantos e quais, entre aquelas fileiras intermináveis de livros, são aqueles dos quais eu inesperadamente iria gostar, mesmo não sendo de autores que eu recomendaria, nem sendo dos gêneros que normalmente prefiro? Cara, isso é aflitivo.

E uma ideia leva a outra, é claro. Richard Bach escreveu: “Mesmo com todos os livros que já temos, ainda há tantos por escrever!” E há. As estantes físicas têm espaço limitado, mas, ainda que o mundo inteiro ficasse coberto de livros, mesmo assim não poderíamos pensar que tudo já teria sido dito. Como o discípulo de um mestre zen aprendendo que sua educação jamais estará completa, sou levado à conclusão de que o legado cultural da humanidade continuará para sempre em construção. E todos fazemos parte disso - até mesmo, querendo ou não, quem não lê. A diferença é que ler, refletir, interligar, construir sua própria cultura, é assumir um papel de protagonista nesse processo, ao invés de mero figurante.

Teria sido tudo efeito do chocolate? Se me atrevesse a tanto, eu escreveria um ensaio borgeano (referência a Jorge Luís Borges) sobre “a esmagadora infinitude das estantes imaginárias”. Talvez, lá na pontinha de uma dessas estantes (o que é contraditório, pois, se é infinita, não tem pontinha) houvesse um lugar para mais esse livro.