terça-feira, novembro 24, 2009

O tempora! O mores!

Confesso que sempre achei difícil me manter informado até mesmo sobre as coisas importantes da atualidade. Imagino que a maioria dos membros da casta marginalizada dos apaixonados por literatura enfrentem o mesmo problema: sentar e ler um jornal de cabo a rabo só é tarefa exequível para quem desconhece o canto de sereia de um bom romance. O leitor entusiasta, quando encontra um tempo livre no seu dia, quer logo voltar ao livro que estava lendo na véspera, ou começar aquele outro que parece tão empolgante, e, como, com poucas exceções, o tempo não é um recurso abundante para ninguém nestes dias, é preciso fazer uma opção. Resultado: acabo lendo, do jornal, somente aquilo que, após uma rápida análise preliminar, me parece realmente essencial. Quem quiser pode me chamar de alienado, mas, se eu o for, ao menos posso dizer que estou em excelente companhia:

"Para que vou gastar uma hora do meu dia lendo coisas que amanhã não vão valer mais nada? (…) Um jornal é lido para ser esquecido. Já o livro é lido para eternizar a memória." (Jorge Luis Borges)

Sim, o Borges! Depois disso, receberei a pecha de "alienado" como um elogio.

Se eu já suo para me manter atualizado sobre as coisas importantes, não seria uma manchete do tipo Universitária expulsa da faculdade por causa do comprimento do vestido que iria me motivar a clicar num link do Yahoo Notícias e gastar preciosos minutos me inteirando dos detalhes. Porém, como acontece com muitas das demais vulgaridades e insignificâncias que tanto fascinam a maioria (e, por isso, são pautas preferidas pelos meios de comunicação), essa história acabou por me atropelar independentemente da minha vontade, forçando-me a formar uma opinião sobre o caso. Não que eu ache que minha opinião vá interessar a alguém - pois, para ser franco, também não ligo a mínima para o que os outros porventura pensem sobre coisas desse naipe -, mas, como a coisa em si é apenas a ponta de um iceberg que pode, ele sim, merecer nossa atenção (e nossa preocupação), então vá lá.

Primeiro de tudo, quero deixar algo claro: as polegadas de pano a mais ou a menos no vestido (ou que nome tenha aquela peça de vestuário) da tal estudante não são a coisa mais importante aqui. Pelo que me toca, ela poderia ir para a faculdade usando apenas um par de brincos de camelô, e isso seria um problema só dela. Claro que provavelmente seria presa por conduta obscena, atentado ao pudor ou outro termo jurídico similar, mas isso também seria problema só dela, e não me faria nem levantar os olhos do meu livro para prestar atenção a qualquer comentário feito a respeito do ocorrido. A conduta intolerante demonstrada pelos colegas da tal moça é de fato preocupante, mas também não é o meu foco aqui. O que me deixa abismado é ver o quanto o valor das coisas, a noção do que é ou não digno de atenção ou admiração, está não só distorcida, mas despedaçada nessa sociedade que extremamente a contragosto temos que chamar de "nossa" sociedade, e nessa "cultura" que eu reluto em chamar assim, porque para mim cultura significa outra coisa.

A estudante passou por uma situação constrangedora, teve alguns de seus direitos humanos mais básicos desrespeitados, e por isso mereceria, em princípio, toda a nossa solidariedade e apoio. Deve ser horrível, depois de passar por tais coisas, ainda sofrer tanta exposição indesejada... Hum... Indesejada? Aí já começo a ter dúvidas.

Pelo andar da carruagem, daqui a um mês ou dois ela estará na capa da Playboy. Depois virão zilhões de entrevistas nos mais diversos programas de TV, desde o da Luciana Gimenez (não esperem que eu saiba o nome do programa) até o Globo Rural, então um convite para participar do próximo Big Brother, um site oficial que os fãs em dois tempos entupirão com mensagens do tipo "adimiro (sic) demais seu trabalho" (Trabalho? Que trabalho??) e por fim seu próprio programa de variedades na TV, que a moça apresentará, provavelmente, sem ter o menor cacoete para a coisa, mas tudo bem, pois isso, metade das pessoas que estão atualmente apresentando programas de TV também não têm. Tudo (inclusive as fotos como veio ao mundo e a participação naquele verdadeiro tratado da baixaria que é o BBB) sempre dando-se ares de moça de família, pois, afinal, tem um filho pequeno... Sua fama não durará mais que os proverbiais 15 minutos de Andy Warhol, é claro, mas já é muito mais do que sua real importância justificaria.

Isso tudo me leva à pergunta: o que podemos esperar de uma sociedade onde o escândalo (que uns procuram, outros aproveitam quando ele lhes cai no colo, mas é sempre escândalo) virou um dos caminhos mais curtos para a fama, a riqueza e a admiração de milhões? Como é que se vai educar uma filha ensinando-a a ter respeito por si e pelos outros, a estudar para ter mérito pessoal e um ganha-pão honesto, quando essa é a imagem de uma "mulher de sucesso" que a mídia oferece? Quando, onde foi que perdemos completamente a capacidade de distinguir entre o relevante e o espúrio? O momento exato é impossível de determinar e não é realmente importante. A causa, essa não é difícil de descobrir: quando não se tem qualquer ideal, objetivo ou referência de valores para nortear a vida, cria-se um vazio, que, como dizia Aristóteles, tem a tendência de se preencher com alguma coisa. E, se tudo o que o meio circundante oferece são futilidades e idiotices, então sinto muito, meus caros, mas é com isso que nossas próximas gerações irão ocupar seus cérebros, suas almas e suas vidas.