sábado, dezembro 19, 2009

Gratidão


É interessante como os sentimentos mais legais que nós, seres humanos, experimentamos em nossas efêmeras existências são (coincidência ou não) justamente aqueles que é mais importante e relevante dar do que receber. E talvez a nenhum outro sentimento isso se aplique melhor do que ao da gratidão. Não que não seja maravilhoso receber uma manifestação sincera de gratidão de outra pessoa, mas esse é realmente um sentimento que faz um bem muito maior a quem o experimenta do que a quem é dirigido, o que me leva a suspeitar que a gratidão talvez seja a contraparte positiva do ódio - este, como dizia um verso de uma música que ouvi certa vez, é "o veneno que um toma, querendo que o outro morra". A música não era grande coisa e não lembro ou nunca soube quem a cantava, mas só por trazer esse verso ela já merece ser poupada do limbo do esquecimento que é o destino fatal de 99 por cento de todos os pop-rocks de FM.

Um bom começo para tentar explicar o que quero dizer é aquela gratidão que não se destina a pessoas, e sim a Deus, ou a qualquer poder superior no qual a pessoa acredite - e talvez quem não acredita em nada disso sinta-se grato ao acaso, mesmo que essa ideia pareça um tanto sem sentido. Não vou dizer que estou cem por cento satisfeito com a vida que levo - estaria bem mais contente se pudesse ganhar a vida escrevendo ou ensinando, ao invés de me dedicar a serviços burocráticos, por mais que esteja ciente da importância do que faço -, mas fico grato, sim, quando, no meu trajeto a pé para o trabalho pela manhã, passo por alguns sujeitos de camiseta azul que também se dirigem ao trabalho, sendo que o deles, numa grande indústria aqui da cidade, é braçal e paga um quarto do que eu ganho. Talvez esses caras não tenham tido a chance de estudar, ou talvez tenham tido a chance e tenham tido preguiça, tanto faz; minha gratidão é por ter tido a chance e também a vontade, pois as duas coisas foram necessárias para que eu chegasse a ter o que tenho hoje. Não me sinto realizado, mas não tenho nenhuma preocupação material. Pode parecer excessivamente pragmático vindo de alguém que se considera um idealista, mas botar a cabeça no travesseiro à noite e poder dormir sem ficar pensando se vai ou não conseguir fechar as contas no fim do mês também tem seu valor. É algo pelo qual não é descabido ser grato. Além disso, o dinheiro que ganho vai um dia pagar o meu curso de mestrado, que poderá ser uma chance de mudar de vida - uma chance que os tais caras de camiseta azul talvez nunca tenham.

Refletir sobre tudo isso e sentir que tenho pelo que agradecer faz bem. Não a Deus: não creio que faça diferença para Ele. Mas faz bem
a mim.

Fico pensando, também, na ideia mais ou menos generalizada de que um gesto que haja demandado sacrifício de quem o fez é mais merecedor de gratidão do que um que tenha sido espontâneo, natural. Talvez seja mais merecedor, mas deve haver um motivo qualquer na complexa natureza humana para que as coisas pelas quais mais facilmente nos sentimos gratos sejam aquelas feitas quase sem perceber pela outra pessoa. Um gesto de amizade sincera (aliás, "amizade sincera" é redundância: se não for sincera, não é amizade) é sempre espontâneo, gratuito, feito por prazer, e, no entanto, que gratidão desperta! Um momento agradável que se partilha fazendo seja o que for, uma boa conversa, um desabafo feito ou ouvido, algumas lágrimas nossas no ombro de um amigo, ou as dele no nosso - tanto faz. Quando a amizade é verdadeira, tudo isso tem o mesmo valor. Eu fico grato a um amigo que está sempre disponível para me ouvir quando preciso, mas fico igualmente grato quando ele, ao precisar que alguém o ouça, procura por mim.

Por fim, acredito que a gratidão é algo que deve ser oferecido e aceito alegremente, mas não é algo que se deva procurar - não se deve fazer coisa alguma esperando gratidão. E isso não apenas por causa do nobre princípio cristão da bondade desinteressada, que não espera recompensas: há um motivo bem mais prático, que é o simples fato de que, na maioria das vezes, quem espera por gratidão se decepciona. A gratidão vem quase sempre quando e de onde não se espera.