terça-feira, dezembro 23, 2008

A Síndrome


Conversando com uma amiga, pouco tempo atrás, ouvi dela uma reclamação que já havia ouvido inúmeras vezes, de inúmeras pessoas diferentes, e que, tendo ela naquele momento a necessidade (ao menos, psicológica) de fazer, tocou a mim, na qualidade de único representante do sexo masculino ali presente, o papel de "ouvidor" - que é diferente de um simples ouvinte: ouvidor era o ocupante de um antigo cargo de justiça, a quem competia, como o nome indica, ouvir as queixas das pessoas que pleiteavam alguma causa. E a queixa dessa minha amiga era: "Puxa, como é raro a gente encontrar um homem romântico..." Não me contive que não fizesse a pergunta: "E o que vem a ser um homem romântico?" Só a longa pausa que ela fez antes de responder bastou para deixar óbvio que, ao menos na cabeça das mulheres, "homem romântico" é uma daquelas coisas mais fáceis de identificar do que de definir. Quando finalmente falou, eis, mais ou menos, o que ela disse: "Ah, romântico é aquele cara que é carinhoso, gentil, atencioso, que se liga no que a namorada quer ou precisa, que não tem vergonha de fazer um carinho ou um elogio, que sabe falar coisas bonitas que façam a menina se sentir especial..." Essa definição também não era muito diferente de muitas outras que eu já tinha ouvido. Fiz minha melhor cara incrédula e rebati: "E vocês gostam disso?" A reação dela foi bem a que eu previa: pareceu chocada com a minha dúvida e respondeu com muita ênfase: "Ora, é claro que gostamos! É o que toda garota sonha!" E eu: "Então, por que agem tão em desacordo com esse desejo?"

(Parêntese 1: Se ela vier a ler este texto [e sei que vai ler], peço vênia se as frases não estiverem muito exatas, pois transcrevi tudo de memória. Se houver alguma discrepância muito grande, avise, que eu altero! :P)

Vamos falar claramente: eu, e também um ou dois amigos meus, somos caras que não temos a menor vergonha de nos dizer românticos até a medula. Correspondemos ponto por ponto a todas as exigências expressas por essa moça, e a mais algumas - e as histórias que já ouvimos uns dos outros por cima de várias mesas demonstraram que nenhum de nós é estranho à experiência de ver garotas de quem gostamos nos darem as costas para ir atrás de um ogro qualquer (sem ofender o Shrek, que é um ogro muito simpático e decente). E por cima dessas mesmas mesas instalou-se o inevitável debate: por que é que, da boca pra fora, toda mulher quer um namorado romântico - mas, na hora de encarar a situação prática, invariavelmente prefere um cara que ocupa todo um hemisfério do cérebro com o item cerveja (pois o outro hemisfério é reservado ao item futebol)? Que se esquece da existência dela durante uma inteira tarde de domingo porque o Grêmio (ou outro time) está jogando?? Que acha um saco ter que conversar com uma namorada??? Que acha que "amigo de mulher é cabeleireiro"???? Que concorda com a frase do célebre personagem de Luís Fernando Veríssimo que diz que "mulher só serve pra três coisas, e pra duas tem diarista"?????

(Parêntese 2: Um de meus amigos terminou de mastigar o que tinha na boca e tentou dar resposta a essa questão crucial: "Porque mulher é um ser ilógico!" Valeu, Albano, mas que tal me dizer alguma coisa que eu ainda não sei?)

Ilógica, toda criatura humana é, em maior ou
menor grau (embora não haja o que discutir que, nesse quesito, as mulheres são mestras, e os homens, meros aprendizes...), o que não impede que façamos escolhas baseadas em nossos desejos e preferências. Quem odeia misturebas de salgado com doce, como eu, por exemplo, não vai escolher "peru à califórnia" quando a mãe lhe perguntar o que gostaria que fosse preparado para o almoço de seu aniversário. Então, por que uma moça que sonha com atenção e romantismo escolhe quase sempre um namorado que não só arrota alto em público, como ainda se gaba disso como de um feito heróico? Um cara que não vai nem lembrar de ligar para ela no dia dos namorados? Que a trata de forma grosseira? Um sujeito com quem fatalmente ela vai se frustrar e se aborrecer?

Uma hipótese razoável é que "o que é fácil não tem graça". Talvez, inconscientemente, a mulher sinta que a companhia de um homem que sempre vai tratá-la bem e que sente sincero prazer em agradá-la oferece muito pouco em termos de "emoção". É muito mais desafiador pegar um cara que não é nem de longe romântico ou gentil, e passar anos, às vezes a vida toda, fazendo um esforço hercúleo para mudá-lo - mesmo sabendo, lá no fundo, que isso é impossível, que as pessoas não mudam, ou melhor, até podem mudar, mas somente por esforço e vontade próprios, nunca de outra pessoa... O mais patético é que, se, por força de algum milagre, ela conseguisse de fato transformá-lo, seria para logo em seguida perder o interesse por ele. O cara cafajeste é fascinante justamente por ser cafajeste: se um dia ele se apaixona e resolve se regenerar, aos olhos das mulheres seu poder de sedução desaparece.

Ou seria porque, pelas convenções que regem a sociedade, um homem muito gentil e educado é considerado pouco condizente com a figura do macho-padrão? Na Idade da Pedra, o homem que batia mais forte e gritava mais alto levava vantagem na hora da divisão da caça, o que o fazia um melhor provedor do que aqueles com menos gosto pela violência - e por isso, os "ogros" eram os preferidos pelas mulheres. Talvez as mulheres de hoje estejam muito mais próximas de suas antecessoras pré-históricas do que gostariam de admitir... Desconfio que elas gostem da idéia (eu disse da idéia, que é por natureza apenas uma abstração) de serem amadas e bem tratadas, porque, sendo criaturas mais sensíveis e delicadas, desejem ser tratadas de acordo... Só que, ao terem que escolher um companheiro de fato (um cara de carne e osso), optam pelo que coça o saco em público, só pensa em futebol, dá muito mais atenção ao carro do que à esposa e acha romantismo coisa de boiola, meramente porque a sociedade convencionou que essa é a conduta de um "homem de verdade" - e as mulheres, inconscientemente, introjetaram essa noção.

O amor tem necessariamente que ser uma coisa complicada, já que é o encontro de dois universos infinitos que são as mentes e corações de duas pessoas. Mas talvez o que mais o torna complicado seja o fato de nenhum dos dois sexos saber direito o que realmente espera do outro... Por que será tão difícil lidar com a situação de nos ser oferecido exatamente aquilo com que sonhamos? A amiga cujo desabafo inspirou este artigo chama isso de "síndrome do não-pode-ser-verdade". Será isso uma prova de que eventualmente as mulheres também podem estar conscientes do que acontece com elas?... Espero que seja.