domingo, agosto 25, 2013

Somos Tão Jovens

 
Cintia já viu o filme Somos Tão Jovens, que eu ainda não vi, mas certamente pretendo, e me contou algumas coisas gerais sobre ele, evitando spoilers, como costumamos dizer. Ela comentou que houve coisas que não entendeu e sentiu que uma pessoa ligeiramente mais velha teria entendido, porque viveu a "época". Acho que é isso mesmo, pois, sendo alguns anos mais velho que ela, tive tempo de ver o Legião Urbana, se não no auge, ainda como uma das bandas mais expressivas do rock nacional, isso no fim dos anos 80 e início dos 90, época de minha adolescência. Ela também comentou que, se Renato Russo era mesmo como foi retratado no filme, deve ter sido uma pessoa difícil de lidar. Tenho a impressão de que ele o foi de fato até certa altura; nos últimos anos de sua curta vida, já dava a impressão de uma pessoa mais dócil e tratável, o que me faz lembrar a frase célebre de Cícero: "Os homens são como os vinhos: a idade melhora os bons e azeda os ruins". E creio que com 36 anos - idade em que o "profeta" do Legião despediu-se deste mundo - qualquer pessoa já tenha idade suficiente para ter-se tornado o que tiver de ser.
 
Como fã, na época, não deixei de ler algumas entrevistas que Renato concedeu a revistas musicais, e, embora a maior parte do que ele disse já me haja, inevitavelmente, fugido da memória há muito tempo, algumas coisas ficaram. Uma dessas foi que, tendo ele falado de sua tendência à depressão, o entrevistador perguntou se achava que compunha melhor quando deprimido, e a resposta: "Claro!" Mesmo aos 17 anos, o perigo disso me saltou aos olhos, e o que vi mais tarde o confirmou.
 
Pessoas de sensibilidade extraordinária sofrem muito neste mundo, que, evidentemente, não foi feito para elas. Sofrem por não encontrar respostas para perguntas que as outras pessoas nunca se fizeram, sofrem por se sentirem diferentes e não saberem por que, sofrem porque a maioria não as entende, sofrem por não serem capazes de aceitar e confiar quando encontram alguém que entende, e sofrem pela simples grosseria e brutalidade da realidade que as cerca. Quando, além de uma sensibilidade extraordinária, têm a sorte de também possuir talento artístico (pois as duas coisas nem sempre andam juntas), elas muitas vezes fazem disso um refúgio e uma forma de cura, uma maneira de reorganizar seu mundo de uma maneira que faça sentido para elas. Há também aqueles (e desconfio que sejam a maioria...) que ficam apenas com a parte ruim da coisa: têm a sensibilidade que faz alguém aspirar a ser um artista, mas não o talento que torna isso possível. A esses, resta encontrar o conforto que lhes for possível em obras como aquele poema de Thiago de Mello, e fazer o que estiver ao seu alcance para dar algum sentido a esse furacão de pensamentos e sensações não-expressos, e tentar tirar deles algo de positivo.
 
A bênção do artista, seja ele músico, poeta, pintor, ou o que for, é conseguir transformar sua angústia em algo bonito e de valor - e isso é uma bênção para ele e para a humanidade. Para o artista, essa metamorfose, embora dolorosa, traz, ao fim do processo, uma satisfação que talvez não se compare a nenhuma outra coisa na vida. Para a humanidade, ela presta o grande serviço de trazer à existência coisas que façam todo o cansaço e sofrimento que enfrentamos valer a pena. Falando por mim, digo que um mundo feito de trabalho exaustivo, notícias ruins, frustrações, poluição, pessoas ignorantes e mal-educadas, e onde, além de tudo isso, não existissem Homero, Bach, Leonardo da Vinci, Tolkien e (por que não dizê-lo?) o Legião Urbana, não seria um lugar onde a vida fosse tolerável.
 
Até aí, tudo parece OK, ou, ao menos, tão OK quanto possível. A pessoa sensível e dotada de talento tem a arte como válvula de escape, que, além de aliviar sua angústia, produz beleza e sentido, coisas importantíssimas. De certa forma, são coisas ruins e boas compensando-se mutuamente, o que talvez seja apenas, e mais uma vez, a natureza buscando maneiras de restabelecer o equilíbrio, como ela costuma fazer. O problema - o perigo, como eu dizia ao falar de Renato Russo - começa quando uma pessoa dotada da angústia do artista (acompanhada ou não de talento, tanto faz) se apaixona pela própria angústia, pelo próprio sofrimento. Então a arte, ou qualquer canhestra, porém honesta tentativa de produzi-la, deixa de ser uma terapia, um remédio, uma cura, e vira uma espécie de veneno. A pessoa passa a procurar voluntariamente se angustiar e deprimir porque acha que assim "produz" melhor, ou, o que é ainda mais pernicioso, porque isso faz com que se sinta "especial". Então ela passa a só enxergar o que lhe causa dor, porque a dor "inspira". Fecha a porta à felicidade, porque ser infeliz é mais "poético".
 
Em minha vida já vi diversas pessoas (fossem artistas que eu admirava ou pessoas com quem convivi) caírem nessa armadilha, e nenhuma delas terminou bem. Não tem como terminar bem alguém que vira as costas à mão estendida de um amigo para poder fechar-se em sua solidão e então escrever um belo (?) poema sobre ela. Não tem como terminar bem alguém que recusa um ombro e um ouvido carinhosos para não ter que abrir mão do prazer distorcido de poder sentir que "ninguém o entende". Felizmente, não se trata de uma armadilha sem saída: algumas dessas pessoas caíram em si a tempo e compreenderam que as alegrias simples da vida, se não são tão duradouras quanto as grandes realizações, podem, muitas vezes, trazer a mesma satisfação. Que essas alegrias estão aí para todos e que não há nada de errado em aceitá-las com gratidão. Que definhar em sofrimentos desnecessários é um preço alto demais a pagar para sentir-se especial. E que dor, saudade, melancolia, fazem parte de nossa condição humana. Aceitá-las torna menos doloroso lidar com elas, e, se conseguirmos transformá-las em matéria-prima de algo belo e duradouro, então excelente: esse é o maior prodígio de alquimia que pode existir. Mas acostumar-se à dor ao ponto de começar a gostar dela jamais fez de ninguém uma criatura melhor.