domingo, novembro 04, 2007

Todos os Nomes

"Um nome, que há num nome?", pergunta-se na peça de Shakespeare uma Julieta que novas e estranhas emoções tornam propensa a rompantes filosóficos pouco comuns para os seus 14 anos. E prossegue: "O que chamamos rosa, com qualquer outro nome teria o mesmo doce aroma". A rigor, essa sentença tão simples é sem dúvida verdadeira, mas, ainda que a ligação entre o nome e a coisa que ele designa seja fruto de mera convenção, não se pode pôr em dúvida que se trata de uma ligação extremamente estreita e forte. Num certo sentido, o nome é a coisa, e vice-versa.

Por essa razão, tenho para mim que uma das mais importantes decisões que nossos pais tomam ao longo de suas (e nossas) vidas, é a escolha do nome que nos hão de dar. Um nome forte, ainda que simples, e, se possível, escolhido também pelo seu significado, um nome que, depois de adultos, nos diga algo sobre nós mesmos, e com o qual nos sintamos à vontade como se fosse uma segunda pele, é um presente de valor inestimável.

É inevitável refletir sobre isso quando, no trabalho, lida-se diariamente com dezenas de pessoas, olha-se seus documentos, tomando contato com tantos nomes e com uma parte das histórias dessas pessoas. E é curioso observar como as preferências na hora de dar nomes às crianças parecem ter variado ao longo do tempo. Pessoas idosas tendem a ter nomes compridos, como se, três gerações atrás, os jovens pais de então fizessem questão de dar aos seus rebentos um mínimo de quatro sílabas: são Enedinas, Nazeazenos, Ornalinas, Astrogécilos, Dorcelinas... Suponho que, na época, isso fosse considerado elegante. Em todo caso, embora muitos desses nomes não sejam encontráveis naqueles interessantíssimos livros que investigam a origem e o significado dos nomes próprios, eles foram provavelmente dados como homenagem a alguma pessoa que os teve antes; de alguma forma, têm sua história.

O que realmente dá pena é ver os nomes que muitos pais de tempos mais recentes deram e estão dando aos filhos. Mesmo sem me interessar por futebol, é fácil notar que ouvir a escalação dos times é uma das melhores maneiras de se tomar contato com nomes "exóticos". O que um sujeito chamado Richarlyson, Odvan ou Rosinei iria fazer com um nome desses se não se tornasse um jogador de futebol? Até compreendo que, para seus pais - provavelmente gente simples, de poucos recursos e poucas letras - tenha parecido uma boa idéia escolher (ou inventar...) nomes "diferentes", que fossem "distinguir" os filhos em meio às multidões. Nunca achei oportuno perguntar a alguém com um nome desse tipo sua opinião, mas, pessoalmente, eu preferiria me chamar João (ainda que só na minha turma da escola houvesse mais três) e poder abrir um livro e descobrir que meu nome significa "Deus me Favorece", do que ter um nome que ninguém mais tem e que não significa coisa alguma, pelo simples fato de que não existia até meus pais sentarem diante de um tabelião e declararem que eu me chamaria assim ou assado. Para pior, tais nomes não serão únicos por muito tempo: já deve haver por aí pais/torcedores tirando certidão de nascimento para seus pequenos Richarlysons...

Até nomes de origem clássica podem tornar-se de gosto duvidoso, dependendo do motivo pelo qual são dados. Que o diga a pequena multidão de Édipos e Jocastas que hoje devem estar no fim da adolescência e que assim se chamam por obra e graça de certo autor de telenovelas que, lá pelo fim dos anos 80, decidiu se inspirar na obra de Sófocles para escrever mais um folhetim.

O pior de tudo são os falsos estrangeiros. São tantos Máicons, Diônatans, Uésleis, Tiarles, que carregarão pela vida afora o peso dessa combinação de pouca cultura com a vontade de pôr nomes diferentes. Meses atrás, atendi no meu local de trabalho um jovem de seus 20 anos cujo RG o identificava como "Diéssi" - na certa, o pai simpatizava com algum personagem de filme ou seriado americano conhecido por Jesse. Tive ímpetos de procurar algumas palavras de consolo para dizer ao rapaz.

Mas toda regra tem sua exceção, e, vez por outra, e ainda bem, mesmo um nome desse tipo pode ser usado com satisfação por quem o tem. Tive em tempos uma amiga muito querida que se chamava Deise - e, independentemente de ser um falso estrangeiro, sempre achei que o nome lhe assentava muito bem. Perguntei-lhe se sabia o significado. Ela sabia: vem do inglês "daisy", que quer dizer margarida. Acrescentei outra informação: a palavra no inglês moderno deriva da expressão anglo-saxônica para "olho do dia" (Day's Eye), como a flor era conhecida entre os antigos ingleses. A moça adorou saber disso. "Um nome, que há num nome?" Num nome há muita coisa, jovem Julieta.

2 comentários:

Anônimo disse...

Não encontro palavras para elogiá-lo depois de, como leitora, ser agraciada com um texto tão interessante!!!
Acredito que nomes têm poder. Eles carregam muito da história do indivíduo, e conseqüentemente, um fragmento de história que encaixado a outros infinitesimais fragmentos, formam a história da própria humanidade.
Meu nome por exemplo, é extremamente genérico. Aline você encontra em qualquer esquina, e a probabilidade de eu encontrar ao menos uma ou duas com as quais vou conviver é extremamente alta. Mas talvez poucas saibam o que significa o nome... É um diminutivo do francês arcaico Adeline, que por sua vez, deriva de uma palavra cognata do alemão e significa "pertencente à nobreza, de espécie nobre". Recebi esse nome por causa de uma música francesa com esse título que meu pai escutava muito lá quando tinha seus boêmios vinte e poucos anos... Gosto do meu nome, combina comigo...
Tenciono passar para a minha filha (ou filho, embora eu saiba, de alguma forma, que será menina) um nome de equivalente significãncia. É um nome que certamente vai se diferenciar de todo o resto, todos vão ter alguma dificuldade na pronúncia, e talvez minha filha me odeie por isso (XD), ou quem sabe, chegue a gostar do nome (relacionado a Senhor dos Anéis, RPG, e a todas essas coisas doidas que a mãe dela gosta) e da história dele da mesma forma que eu gosto do meu!

Unknown disse...

Adorado amigo,
É fabuloso este teu texto pois fez-me pensar em centenas de intertextualidades e comentários apenas ao deitar por sobre ele estes meus olhos aflitos por conhecimento.
Começarei do início, para seguir a lógica do mundo, ao menos desta vez!Tiraste, porventura, o título de teu artigo de um romance de Saramago? O romance não versa exatamente sobre o tema de teu brilhante artigo,no entanto, passa-se o mesmo em um ambiente em que tens muita familiaridade: uma repartição pública. Chega a ser até um tanto kafkiana a obsessão do personagem em encontrar uma mulher que encontrava-se no registro de pessoas vivas e posteriormente, desaparecera como que por um passe de mágica, pondo o protagonista em dúvida acerca de seu óbito. Quem sabe um dia não faço uma modesta resenha sobre este livro e a publico aqui?
Retomando: fiquei muitíssimo espantada ao notar o destaque que destas para esse fragmento da obra shakespeareana:“O que chamamos rosa, com qualquer outro nome teria o mesmo doce aroma”, haja vista que é um fragmento que adoro e até mesmo escrevi algo sobre ele,mas encontra-se em meio a estas colinas de papéis que soterram minha humilde mesa.Assim que encontrá-lo,envio-te para que nos espantemos juntos.
Sobre os registros, os nomes que disseste que comumente são de pessoas mais avançadas em anos, principalmente os terminados com sufixo - lina, não te parecem nomes de remédio? Insulina, aspirina, novalgina.
Assim como tua amiga Aline, tenciono pôr em meu filho - caso eu tenha um - um nome bastante extravagante pois se este indivíduo já vai diferenciar-se dos outros por sua personalidade e por sua sanidade "duvidosa", por que não carregar um nome igualmente insólito?
Minha afilhada hoje tem 10 anos e carrega um nome de princesa, contudo, por sua mãe ter tido acesso as letras, a grafia é completamente estranha. Já acostumei-me.
Por ora é apenas isso, receio estender-me por demais.
Beijo tua mão e até a próxima.

P.S.- Costumo brincar com minha mãe e dizer-lhe que seu nome está em minhas orações por conta do nome que ela me deu; nome este que em criança eu detestava mas atualmente adoro.