domingo, novembro 11, 2012

Morte


Uma das coisas que mais me aborrecem na sociedade ocidental moderna é o modo como a cultura que ela criou se posiciona diante de um fato tão natural quanto a morte. Parece existir um acordo tácito pelo qual todos fingem que ela não existe, até que ela os obrigue a encarar sua existência, mandando um lembrete sob a forma da perda de alguém próximo. Crianças, em geral, são "protegidas" do conhecimento do fato de que seus entes queridos um dia irão deixá-las, mesmo não querendo, e de que elas também não escaparão do "único mal irremediável, aquilo que é a marca de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque tudo o que é vivo morre", como escreveu Ariano Suassuna. Mais cedo ou mais tarde, essas mesmas crianças sempre acabarão se deparando com o fato da finitude da vida - geralmente de maneira bem mais traumática e dolorosa do que teria sido se isso lhes tivesse sido ensinado em casa, de uma maneira natural, como acontece com tantos outros aspectos da vida.

É intrigante tentar determinar em que ponto da história de sua formação a sociedade que mencionei há pouco adotou essa atitude hipócrita e avestruzística em relação à morte, se considerarmos que os antecedentes históricos e as raízes que fundamentaram a civilização ocidental levariam a esperar outra coisa. Entre os antigos romanos, os ancestrais falecidos estavam presentes na vida de seus descendentes como se ainda vivessem. Eram homenageados diariamente com atos rituais breves e simples; toda casa tinha um pequeno altar onde devia haver um fogo sempre aceso, dedicado aos deuses lares, que nada mais eram que os espíritos dos membros da família já falecidos. Cada homem rogava a seu pai e mãe mortos que, de onde estivessem, olhassem por ele e pelos seus, e considerava honrosa e confortadora a ideia de que um dia seus descendentes se dirigiriam a ele da mesma forma. Também a tradição judaico-cristã, quando corretamente compreendida, estimula uma atitude de gratidão e reverência para com os mortos (muito distante do desprezo com que a maioria hoje fala em "gente morta", quase como se isso fosse um insulto), o que acaba tendo o efeito de fazer com que as pessoas encarem com serenidade o fato de que um dia também vão morrer. Pergunto: onde e quando tudo isso foi perdido? Por que, hoje em dia, a maioria das pessoas experimenta mal-estar ao passar diante de um cemitério e nem cogita a ideia de entrar nele, nem mesmo para prestar uma pequena homenagem a alguém que amaram? Por que é considerado de mau gosto falar em morte, mesmo que no fundo todos saibam que ela é real?

A verdade é que isso não é difícil de responder. As pessoas não gostam de cemitérios porque esses lugares as obrigam a pensar no próprio fim - que, no dia a dia, elas preferem fazer de conta que nunca irá chegar. Não teriam esse problema se não estivessem tão acostumadas a levar a vida de uma forma tão essencialmente materialista e superficial, se não dependessem exclusivamente, para agregar valor a si próprias, de coisas temporárias como aparência e bens materiais. Haverá um momento em nossas existências em que será preciso deixar tudo isso para trás, e faríamos bem em aceitar tal ideia e conviver harmonicamente com ela, em vez de tentar negar o fato a todo custo, evitando até mesmo pensar nele.

 É natural que a ideia da morte nos intimide. Mesmo para quem acredita que ela não é o fim de tudo, essa experiência apresenta-se como uma ruptura tão radical com tudo o que conhecemos, que o nosso temor ancestral pelo desconhecido não perde a oportunidade de se fazer presente. Mas, apesar do que diz Suassuna, será a morte, mesmo e necessariamente, um "mal"? Não consegui deixar de me lembrar do universo de Tolkien, onde existem os elfos, seres imortais por essência: a velhice não existe para eles - pelo menos, não a velhice física - e, mesmo que morram em combate ou de causas acidentais, renascem num outro corpo idêntico ao que tinham, com a mesma personalidade e as lembranças de tudo o que viveram... Os humanos os invejam por isso - só que, ironicamente, a recíproca é verdadeira. Os elfos, ao menos os que já viveram muito, invejam a mortalidade dos homens: depois de passar por eras inteiras, não há como não sentir um profundo cansaço, uma angústia acumulada por terem visto gerações de amigos de outras raças morrerem à sua volta, e, talvez o pior de tudo, ter que testemunhar tanto mal acontecer, e chegar à conclusão de que ele também é eterno. Talvez a morte seja, realmente, um repouso salutar e necessário, e talvez nossa mortalidade seja a própria mola que nos move: talvez seja a consciência do fim iminente o que nos leva a desejar fazer do tempo que temos algo que valha a pena, algo, qualquer coisa, que leve aqueles que ficarem a se lembrarem de nós depois que nos formos - pois, mais dia, menos dia, iremos, e essa é a única coisa em toda a vida da qual podemos ter absoluta certeza.

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