terça-feira, dezembro 25, 2007

Índios

Todo final de tarde de domingo, preciso cumprir o ritual de me dirigir à estação rodoviária de São Leopoldo, a fim de retornar para a cidade onde trabalho. Há sempre uma certa melancolia nisso, já que significa voltar para um local e um trabalho onde, se pudesse escolher, não estaria. Entretanto, a viagem em si, que para muita gente seria aborrecida, eu consegui transformar num momento agradável: reclino o banco, ponho os fones nos ouvidos e, durante essa hora e meia, "viajo" também no sentido mental do termo, e, embalado pela música, ponho-me a pensar em milhões de coisas, das mais simples às mais profundas, o que sempre me faz chegar ao destino com novas idéias ou, no mínimo, com a cabeça um pouco mais clara. Naturalmente que é preciso uma certa dose de sorte, pois ocasionalmente, dependendo dos companheiros de viagem que se tenha, o ônibus pode virar uma feira livre... Mas não é esse o meu tema de hoje.

Na maioria das vezes, há meia dúzia de crianças pedintes circulando pela rodoviária, crianças que não se distinguiriam de dezenas ou centenas de outras espalhadas por toda a cidade, não fosse o fato de seus traços fisionômicos, tom de pele, tipo de cabelo e modo de falar as identificarem como descendentes de índios, o que, pelo menos para mim, dá muito em que pensar.

Parece haver algum método e organização no modus operandi dessas crianças: enquanto algumas se posicionam estrategicamente junto aos guichês de venda de passagens para tentar conseguir as moedas que os passageiros porventura recebam de troco, outras percorrem a área de espera entre as duas fileiras de boxes, às vezes pedindo uns trocados, outras vezes tentando vender peças de artesanato - feitas com inegável habilidade, mas sem praticamente nada a ver com qualquer coisa que represente uma cultura verdadeiramente indígena. A impressão que se tem é de que esses meninos e meninas foram orientados - quem sabe, treinados - para pedir, aí usado como verbo intransitivo, pois pedir o que é o de menos. Parece que o importante é pedir tudo o que for possível, mesmo sabendo de antemão que é impossível receber, para depois verificar se o obtido serve para alguma coisa ou não. Certa vez um menino de uns seis anos me disse daquele jeito trôpego de quem não está acostumado a falar português: "Me... dá... es... se... ra... dinho?" (apontando para meu discman) Em outra ocasião, eu estava trocando as pilhas do citado aparelho quando outro menino me pediu as pilhas velhas. Nem faço idéia do que pretendia fazer com elas. De resto, embora trabalhem, de certa forma, em equipe, o senso de solidariedade e companheirismo não parece estar muito em alta: uma vez dei um pacote de biscoitos para dois garotos, e imediatamente tive que apartá-los, pois os dois começaram a brigar por ele na minha frente mesmo, sem que lhes ocorresse a idéia de dividir.

O que mais me pergunto é se essas crianças têm alguma consciência do fato de que a terra onde elas e seus pais hoje levam essa existência precária, é a mesma da qual seus ancestrais um dia foram donos e senhores. É óbvio que têm pouco estudo, se é que têm algum, e, de mais a mais, não me consta que a educação formal oferecida em nossas escolas enfatize muito a triste história do destino que tiveram os habitantes originais do que hoje chamamos de nosso país, mas será que alguma coisa nesse sentido é passada de pais a filhos? Será que essas crianças sabem o que é ter uma história, por mais revoltante que seja? Não se preocupem, não vou desfiar aqui aquele discurso batido e absurdamente ingênuo que quase sempre aparece quando se fala nos brasileiros nativos: sei muito bem que a idéia de um "paraíso terrestre, habitado por povos inocentes e de coração puro, que viviam em perfeita harmonia com a natureza e uns com os outros" é uma rematada tolice, e que, muito antes de o primeiro europeu aqui pôr o pé, o continente americano já estava cansado de conhecer guerra, miséria, escravidão, exploração do homem pelo homem e todas essas outras mazelas ditas "civilizadas", pois o homem é o homem em qualquer lugar e seja qual for a raça. Porém, sempre é triste observar a perda da dignidade de qualquer ser humano, quanto mais a de povos inteiros. Mesmo que sua realidade estivesse longe de qualquer coisa paradisíaca, fosse por vezes difícil e violenta, esses povos tinham seu orgulho, sua cultura própria, seus meios de subsistência e sua liberdade - enfim, tinham as coisas essenciais que são, ou deveriam ser, direitos inalienáveis de todo ser humano, e diante das quais todos os confortos da "civilização" não passam de miudezas. E coisas que, uma vez perdidas, dificilmente são recuperadas.

Um comentário:

Anônimo disse...

Os descendentes indígenas são mantidos com fim eleitoreiro. Suas reservas, aquelas cujos solos oferecem riquezas, não são, nem foram protegidas pelos governos. A inserção dos mesmos na comunidade também é negada!!
Há muito interesse escuso amparando a indignidade destas gerações de homens e mulheres que arrastam seus artesanatos por aí. Gostaria muito de chamá-los brasileiros.