quarta-feira, abril 02, 2008

As Quatro Estações

Eu não poderia apostar minha cabeça na exatidão da data, mas acho que foi por volta do final de 1989 que o Legião Urbana, uma das bandas mais importantes da história do rock nacional, lançou o que, em minha modesta opinião, é o melhor disco de sua carreira: As Quatro Estações. Quem conhece a trajetória da banda sabe que seu vocalista e mentor, Renato Russo, tivera seu período punk/revoltado, que gerou, em discos anteriores, algumas músicas que valiam por um soco na boca do estômago de certos setores da sociedade e por um grito de alerta contra uma série de absurdos. Já em As Quatro Estações, Russo dava a impressão de estar mais aquietado e introspectivo, ainda preocupado com o mundo, é claro, mas preferindo focar a maneira como o indivíduo se relaciona com ele.

Disse que creio que As Quatro Estações saiu no final de 1989 porque lembro com toda a clareza possível que esse disco teve um papel fundamental na minha vida durante os dois anos seguintes, quando cursei as duas últimas séries do segundo grau (na época, ainda não se falava em "ensino médio"). Tinha 16 e 17 anos, às voltas com todas as penas, sonhos e desafios da adolescência, e começando a ter a percepção clara de que o fato de me sentir tão diferente de todo mundo não era apenas mais um desses complexos adolescentes que ficam para trás assim que o organismo dá um jeito de compensar os excessos hormonais, mas algo com que eu teria de lidar, da melhor maneira que pudesse, pela vida afora.

Ouvir o Legião Urbana, e principalmente as músicas de As Quatro Estações, me acalmava e trazia um certo alívio, pois fazia com que meu mundo parecesse encontrar o seu eixo, e fazer sentido, mesmo que de forma diferente do mundo onde viviam meus colegas. O vozeirão de bronze de Renato Russo, embalado pelo instrumental simplíssimo mas agradável da banda, falava de coisas que eu entendia, e que seria capaz de jurar ser o único em todo o planeta a entender. Falava das coisas que eram importantes para mim, das coisas em que eu acreditava, das coisas que, ao mesmo tempo em que me afligiam, traziam uma inexplicável satisfação, porque, se eu as sentia, era porque era humano, estava vivo e estava me tornando um homem - não mais um menino.

Foi nessa época que tentei montar uma banda de rock (nem preciso dizer que o Legião comparecia com uma boa porcentagem do nosso repertório à base de covers), também foi quando me apaixonei pela segunda vez na vida e aprendi que o sentimento vem com um sabor diferente quando é por uma pessoa diferente. Hoje me parece inadmissível que mesmo um rapazinho de 16 anos se apaixone por uma garota sobre a qual não sabe coisa alguma, exceto que tem um rostinho encantador, mas adolescência é adolescência... É preciso dar um desconto.

Uma das músicas mais interessantes de As Quatro Estações era Monte Castelo (uma das manias de Russo era batizar algumas músicas com títulos que aparentemente não tinham qualquer ligação com o conteúdo da letra, ou que, mais provavelmente, deviam ter uma ligação que somente ele sabia qual era). Eis aqui a letra:

Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua do anjos
Sem amor, eu nada seria...
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade
O amor é bom, não quer o mal
Não sente inveja ou se envaidece...

O amor é o fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer...

Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua dos anjos
Sem amor, eu nada seria...

É um não querer mais que bem querer
É solitário andar por entre a gente
É um não contentar-se de contente
É cuidar que se ganha em se perder...

É um estar-se preso por vontade
É servir a quem vence o vencedor
É um ter com quem nos mata lealdade
Tão contrário a si é o mesmo amor...

Estou acordado todos dormem,
todos dormem, todos dormem
Agora vejo em parte
Mas então veremos face a face
É só o amor, é só o amor
Que conhece o que é verdade...

Ainda que eu falasse a língua dos homens
E falasse a língua do anjos
Sem amor, eu nada seria...

Como eu lia de tudo, vorazmente, desde a infância, identifiquei sem dificuldade os recortes do soneto mais famoso de Luís de Camões (1524?-1580) e da Primeira Carta aos Coríntios escrita por São Paulo, diferentemente de meus colegas, que, ao verem a professora de Literatura, certa manhã, escrever no quadro aqueles versos, exclamaram, muito surpresos: "Tem uma música assim, 'sora!" Anos mais tarde, na faculdade, outros colegas tinham absoluta certeza de que a parte sobre a língua dos homens e dos anjos era de Camões - por causa da música, sem dúvida. Mas deixa pra lá.

Para efeitos de comparação, aqui vai um trecho da Carta aos Coríntios:

Ainda que eu fale as línguas dos homens e dos anjos, se não tiver amor, serei como o bronze que soa, ou como o címbalo que retine. Ainda que eu tenha o dom de profetizar e conheça todos os mistérios e toda a ciência; ainda que eu tenha tamanha fé, a ponto de transportar montanhas, se não tiver amor, nada serei. E ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres e ainda que entregue meu próprio corpo para ser queimado, se não tiver amor, nada disso me aproveitará. O amor é paciente, é benigno, o amor não inveja, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz incovenientemente, não procura seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal, não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais há de acabar. Tempo haverá em que as profecias desaparecerão, as línguas cessarão e a ciência será abolida, e só o amor permanecerá. Porque em parte conhecemos, e em parte profetizamos. Quando, porém, vier o que é perfeito, o que é imperfeito será aniquilado. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, apreciava como menino. Quando me tornei homem, dei de mão as coisas que eram de menino. Porque agora vemos como num espelho, obscuramente, e então veremos face a face; agora conheço em parte, e então conhecerei como sou conhecido. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor. Porém, dos três, o maior é o amor.

Em muitas Bíblias, encontraremos a palavra caridade no lugar de amor. É porque o texto original era em grego, e a língua grega tinha quatro palavras para designar amor, sendo que, no momento, só me lembro de três. Eros é o amor sentimental e sexual, o amor de amantes; filos é a amizade; ágape (vertido para o latim, cáritas) é o amor de que fala o apóstolo, o amor desinteressado que deseja o bem de todos. Algo, como se vê, infinitamente maior do que a idéia que se tem de "caridade" hoje, que consiste basicamente em dar esmola aos necessitados. Mas creio que, em sua essência, o amor, quando é verdadeiro, tem basicamente as mesmas características, seja qual for o tipo.

Até onde pude ver, a única parte em toda a letra que não é de Camões nem de São Paulo é "Estou acordado todos dormem". Uau! Por que esse pequeno verso, jogado no meio de tanta coisa linda, teria mexido tanto comigo? Tanto quanto o outro sobre "solitário andar por entre a gente", que eu igualmente entendia, ao menos entendia o suficiente para aplicá-lo a mim, aos meus assuntos, aos meus dramas.

Por estranho que pareça, o amor não requer necessariamente um ser que ama e outro que é amado, e não estou falando apenas de amar sem ser correspondido. Ao menos algumas pessoas sabem o que é sentir o amor dentro de si sem ter absolutamente ninguém a quem dirigi-lo, e, no entanto, senti-lo, de forma inconfundível. É como se ele estivesse à espera de algo, mas, de vez em quando, essa espera o deixasse impaciente e ele reclamasse nossa atenção, mesmo não havendo ninguém a quem dedicá-lo. E, como em tantas outras coisas, nisso as pessoas são diferentes. Em algumas, o amor dentro delas é como um pequeno regato que corre de forma constante e não incomoda muito - o que não significa que não possa, no momento oportuno, transformar-se num rio Amazonas, mas normalmente ele não é assim. Em outras, esse amor expectante é um oceano, às vezes plácido, às vezes turbilhonante, mas sempre um oceano, algo tão imenso que não se entende como cabe dentro da gente.

Acho que, na realidade, o amor nasce com a gente, acho que o levamos conosco a vida inteira, como um botão que não desabrocha até o momento em que é tocado pela mão certa. E pode acontecer de levarmos o botão para o túmulo conosco, ainda fechado... Porém, uma vez aberta, essa flor nunca, jamais murcha, ainda que sejamos obrigados a carregá-la na travessia do deserto. Sua beleza nos inspira, seu perfume nos dá energia, e seus espinhos por vezes nos machucam... Mas não há outra maneira de poder dizer que realmente vivemos.

3 comentários:

Anônimo disse...

às vezes acho que deveriamos não ter mais contato....
Te pouparia de meus espinhos.

não é mesmo?

beijos.

Anônimo disse...

Marcos: amar exige coragem. Mesmo que o sentimento apareça sem nos pedir licença e geralmente quando não esperamos, depende de nós decidir entre vive-lo ou fugir dele. Hoje em dia escolher o amor, acreditar e apostar nele exige sempre muita coragem. E se a gente acabar se machucando por causa da escolha que fez, tem o conforto de saber que estamos pagando o preço de uma decisão corajosa. Um beijo.

Anônimo disse...

Quando o amor vos fizer sinal, segui-o;
ainda que os seus caminhos sejam duros e difíceis.
E quando as suas asas vos envolverem, entregai-vos;
ainda que a espada escondida na sua plumagem
vos possa ferir.

E quando vos falar, acreditai nele;
apesar de a sua voz
poder quebrar os vossos sonhos
como o vento norte ao sacudir os jardins.

Porque assim como o vosso amor
vos engrandece, também deve crucificar-vos
E assim como se eleva à vossa altura
e acaricia os ramos mais frágeis
que tremem ao sol,
também penetrará até às raízes
sacudindo o seu apego à terra.

O amor só dá de si mesmo,
e só recebe de si mesmo.

O amor não possui
nem quer ser possuído.

Porque o amor basta ao amor.

E não penseis
que podeis guiar o curso do amor;
porque o amor, se vos escolher,
marcará ele o vosso curso.

Um forte abraço...

Da amiga,

Capitu.